Nome do autor: Professor Ricardo Tavares Local e data: Teatro Micaelense, 15 Fevereiro 2013, no âmbito da Conferência "Ser Europeu nos Açores" Nota biográfica: Ricardo Tavares, de 38 anos, é natural de Vila Franca do Campo. Licenciou-se em 2002 em Teologia na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, com uma tese em Cristologia. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, realizou estudos de pós-graduação em Filologia Bíblica (Hebraico, Grego e Aramaico), Literaturas Antigas (Latim, Árabe, Siríaco, Hieróglifos Egípcios e Copta) e Arqueologia em vários institutos superiores, como a Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, e a École Biblique et Archéologique Française, em Jerusalém, terminando com a defesa de uma tese de doutoramento na Alemanha, sobre a influência da cultura egípcia na formação do cânon bíblico, escrita em língua alemã e publicada na Suíça pela Universidade de Fribourg. Foi professor de Exegese Bíblica na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto e Braga). Além de ter uma Licenciatura em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, dedica-se ao diálogo entre as Ciências Naturais e a Teologia. É Diretor Diocesano da Pastoral do Ensino Superior e do Ecumenismo nos Açores. Texto da conferência: Europeização dos Açores, Açorianização da Europa… 1. A descoberta da «cidadania europeia» – ou a formação da «consciência europeia» – pressupõe uma experiência internacional na Europa, a saída do próprio habitat e a (re)valorização da região-natal em confronto com outras culturas. Assim, para se ser «europeu nos Açores» é necessário, anteriormente, ter-se sido «açoreano na Europa», levando valores e abrindo-se a outros mental e espiritualmente. «O bem se não pode chamar bem, se não se comunica» (Gaspar Fructuoso, Saudades da Terra. I,10). O diálogo existencial e inteletual com gentes doutras nacionalidades, num país diferente do de origem, não é uma ameaça à identidade nacional, mas purifica e amadurece os próprios valores humanos, desde os materiais aos espirituais, passando pelos sociais e os éticos. Contra todo o doentio nacionalismo, a livre circulação de pessoas e ideias, a permuta de dons culturais, a dádiva e o acolhimento de riquezas imateriais, permitem uma simbiose de experiências, a busca do transfundo comum a todos os povos, a descoberta da diversidade na comunhão. Do respeito por essa diversidade depende a longevidade do império europeu, como no passado magnificamente ocorreu no Egito e na Pérsia. Como dizia Gaston Riou, «s’unir ou mourir». Esta sinergia de elementos específicos, sob a plataforma unitária de uma cidadania transcultural, constitui o húmus fertilizado para o progresso da ciência e o desenvolvimento da paz. 2. Pode, então, perguntar-se, que pode um açoreano ensinar à Europa? A memória da construção da jovem sociedade açoreana ainda flui no sangue dos açoreanos. Chegados às ilhas, penetrámos no mato cerrado; desbaratadas as urzes, cultivámos trigo e vinho; vencido o medo com a fé, enfrentámos a destruição dos vulcões e terramotos; abandonados na solidão, descobrimos a solidariedade e o Transcendente. Aprendemos a trabalhar e a crer. Os açoreanos destacam-se nas universidades e empresas europeias pela sua capacidade de se formar e de singrar na vida. São também conhecidos por uma personalidade vulcânica, forte, inabalável, pela sua fidelidade às origens, à família. As suas basálticas «saudades da terra» obrigam-no a regulares viagens ao ilhéu-berço. Ele não arreda pé da sua cultura; ama-a visceralmente e partilha-a sem vergonha e apaixonadamente, quase num proselitismo religioso. Leva consigo uma bandeira e uma coroa do Divino Espírito Santo e faz da sua existência um Império de fraternidade humana, na encruzilhada de continentes em rotas aéreas, marítimas e digitais, encantado pela Natureza surpreendente nos ciclones e nas lagoas, em tudo o Espírito de Deus descortinando e nEle vivendo, sendentário nos lugarejos do cotidiano ou galgando em seculares romarias pelos caminhos da Ilha de São Miguel. 3. Pode, depois, perguntar-se, que pode a Europa ensinar a um açoreano? No coração geográfico da Europa, rodeado de países-irmãos, um açoreano reconfronta-se com o universalismo, tanto o europeu como o mundial. O seu círculo de amigos torna-se um espetro de dezenas étnicas, centenas nacionais, onde a amizade se comuta com a reaprendizagem da vida. Sente de novo como tradição e modernidade não se excluem, fidelidade à história e progresso complementam-se e exigem-se mutuamente. Observando o respeito, o trato quase sagrado dirigido aos animais e às florestas, aprofunda a sua contemplação da Natureza, intui melhor o valor das coisas, o caminho da poupança, a riqueza da simplicidade. Invitado a partilhar, em círculos de sábios, os tesouros da sua cultura, o açoreano pressente o poder do ouvir, da escuta, fonte de sabedoria. Imerso num ambiente de rigor, brio e exigência, supera os seus limites na dedicação ao trabalho, em assiduidade e pontualidade. Católico de nascimento, o açoreano, além de à primeira vista tímido, é curioso e desimpedido por natureza, deixa-se convidar para ir rezar ao Deus único em igrejas protestantes, sinagogas e mesquitas, num ecumenismo humano que eleva a civilização. Aprende a distinguir o que é importante do que o não é, aprende a relativizar o que é secundário, o que não é essencial, aprende a dar valor aos valores elevados, cósmicos. A Europa verdadeira ensina-o que não há povos mais importantes nem povos menos importantes, que somos todos um povo de povos irmãos. Ensina-o que o «fado», o destino, está nas suas mãos, que tragédia é capitular perante o fantasma do medo. Ensina-o a fazer festa, até na derrota, em alternativa à depressão, porque as quedas são princípio de vida nova. 4. Que significa, pois, ser «europeu nos Açores»? Ser «europeu nos Açores» torna-se, neste contexto, uma redescoberta: todas as dimensões da vida, mesmo as localistas, transmutam-se em instrumentos ao serviço de uma Europa mais humana, livre, madura e equilibrada, com uma vocação universal de modelo civilizacional, social, moral e espiritual. Essa vivência da «europeidade» implica uma abertura de espírito vertiginosamente infinita na finitude de uma cultura concreta: a consciência da «fraternidade europeia» (Victor Hugo), tolerante, enriquecida e enriquecedora, converte-se em «renovação» e «redenção» (Eça de Queirós), «modernização» humana e tecnológica para a própria região (Antero de Quental). Os valores humanistas, que constituem a quintessência da cultura europeia, «libertam os espíritos», fazem também reacender, em cada zona do vasto continente europeu, a necessária «utopia», isto é, o desejo, nunca saciado, de uma «Europa dos Povos», onde todos e cada um têm o seu lugar, oportunidade perene de construir a sua própria existência, seja pelas tecnologias seja pelas artes, seja pelas ciências naturais seja pelas ciências humanas. 5. Quais são as consequências práticas destas premissas? As instâncias políticas da Europa precisam ser mais humanas, mais livres e mais civilizadas. A Europa não pertence aos políticos nem aos capitalistas; noutros tempos, venceu a ditadura das religiões e das guerras, agora terá de vencer a ditadura das ideologias economicistas, tanto de direita como de esquerda, as quais reduzem a pessoa humana a objeto passivo no palco da história dos sujeitos. A história já ensinou a Europa que «esvazia a alma» o materialismo utilitarista já denunciado pelo declínio do nazismo, do comunismo e do capitalismo. Advoga-se, neste momento, um predomínio do Espírito sobre a Matéria, da poesia sobre a linguagem técnica, da arte sobre a ciência, da sabedoria sobre o conhecimento (Raúl Proença). Os governantes europeus, nacionais e regionais têm de se libertar da hegemonia dos grupos empresariais famintos insaciáveis de lucros exorbitantes e do vício de selvaticamente tributar os trabalhadores para sustentar o crescente desemprego provocado por uma economia insustentável. Para isso existe o Estado, para proteger a sociedade! Os parlamentos têm de alterar urgentemente a legislação, os governos têm de intervir urgentemente na atividade económica e financeira, de forma a que todas as pessoas possam realizar-se pessoal e profissionalmente na área para que estão vocacionadas, seja na artes ou nas ciências. Isto é possível, basta vontade política! Os jovens açoreanos, por seu turno, têm perceber que mimetizar a rapina imperante nos bastidores da Europa das elites capitalistas, perseguindo ideais egoístas, equivale a um suicídio coletivo; assim, terão de percecionar criticamente tanto a informação como a formação recebida, para que, agora, cotidianamente, e um dia, no pelouro das decisões, contrariem a decadência provocada pela feroz indecência do capital, dos interesses privados, com valores eternos e desinteressados, ocasionando condições para a melhoria da qualidade de vida. Enfim, é preciso europeizar os Açores e açoreanizar a Europa. Ricardo Tavares Intervenção no debate «Ser Europeu nos Açores», proferida no Teatro Micaelense, a 15.02.2013 Sinopse: Europeização dos Açores, Açorianização da Europa… A descoberta da «cidadania europeia» – ou a formação da «consciência europeia» – pressupõe uma experiência internacional na Europa, a saída do próprio habitat e a (re)valorização da própria região em confronto com outras culturas. Assim, para ser «europeu nos Açores» é necessário, anteriormente, ter sido «açoreano na Europa». O diálogo existencial e inteletual com gentes doutras nacionalidades, num país diferente do de origem, purifica e amadurece os próprios valores humanos, desde os materiais aos espirituais, passando pelos sociais e os éticos. A livre circulação de pessoas, ideias e bens, a permuta de dons culturais, a dádiva e o acolhimento de riquezas espirituais, permitem a busca do transfundo comum a todos os povos, a descoberta da diversidade na comunhão, a relativização dos aspetos secundários. Esta sinergia de elementos específicos, sob a plataforma unitária de uma cidadania transcultural, constitui o húmus fertilizado para o progresso da ciência e o desenvolvimento da paz. Ser «europeu nos Açores» torna-se, então, uma redescoberta: todas as dimensões da vida, outrora particularistas, transmutam-se em instrumentos ao serviço de uma Europa mais humana, livre, madura e equilibrada, com uma vocação universal de modelo civilizacional, social, moral e espiritual. A vivência da «europeidade» implica uma abertura de espírito vertiginosamente infinita na finitude de uma cultura concreta: a consciência da «fraternidade europeia» (Victor Hugo), ecuménica e tolerante, enriquecida e enriquecedora, converte-se em «renovação» e «redenção» (Eça de Queirós), «modernização» humana e tecnológica para a própria região (Antero de Quental). Os valores humanistas, que constituem a quintessência da cultura europeia, «libertam os espíritos» e advogam a primazia do espírito sobre a matéria, da estética sobre a ideologia, fazem também reacender, em cada região do vasto continente europeu, a necessária «utopia», isto é, o desejo, nunca saciado, de uma «Europa dos Povos», onde todos e cada um têm o seu lugar, oportunidade perene de construir a sua própria existência, seja pelas tecnologias seja pelas artes. A Europa não pertence aos políticos nem aos capitalistas; noutros tempos, venceu a ditadura das religiões e das guerras, agora terá de vencer a ditadura das ideologias economicistas, tanto de direita como de esquerda, que reduzem a pessoa humana a objeto passivo no palco da história dos sujeitos. Os jovens açoreanos devem perceber que mimetizar o materialismo utilitarista imperante nos bastidores da Europa das elites capitalistas equivale a um suicídio coletivo; assim, terão de percecionar criticamente tanto a informação como a formação recebida, para que, uma vez no pelouro das decisões, contrariem o declínio provocado pela selvática libertinagem do capital, dos interesses práticos, com valores eternos e desinteressados (Julien Benda), ocasionando condições para uma verdadeira «solidariedade dos povos» (José Rodrigues Miguéis) e, assim, uma melhoria da qualidade de vida. Enfim, é preciso europeizar os Açores e açorianizar a Europa.